Espelhos



Uns anos atrás pedi para uma turma de alunos ler o conto "O Espelho" do Machado de Assis. A ordem era: leiam o conto e entreguem o trabalho mais criativo possível. Um grupo absorveu e concretizou o conto de uma maneira incrível: entregaram uma lata, cujo rótulo era a teoria defendida no conto, e quando se abria a lata dávamos de cara com nosso próprio rosto.
No fundo da lata tinha um espelho e a reação de todo mundo que a abriu foi, assim que se via, desviava a lata o mais rápido possível. Então fiquei pensando o porquê dessa reação, o porquê do medo de se olhar e acho que é a consequência do nosso tempo. Olhamos para tudo e para todos, mas nunca olhamos para nós mesmos.
Quantos álbuns do ORKUT vocês visitam por dia? Quantos blogs vocês leem na internet? Quem não perde o BBB? Quantas fofocas vocês fazem por dia? Voyerismo é a palavra de ordem da nossa sociedade. Não só a tecnologia contribui para esse afastamento de nós mesmos, mas as próprias relações que construímos com os outros. Quantas vezes deixamos de olhar para as nossas vidas e nos preocupamos com a vida dos outros? Tão fácil apontar os defeitos, perceber as qualidades, resolver os problemas, aconselhar os outros. E na nossa própria vida? Por que preferimos nos cegar do que reconhecer nossas fraquezas ou acreditar no nosso potencial?
Assim seguimos a vida, olhando cada vez mais para fora e esquecendo do que existe dentro de nós. Preenchemos nossa curiosidade com BBB, MSN, ORKUT, blogs, chats, tudo para ver os outros. Não faz muito tempo me dei conta de uma coisa. Ao ligar meu note para ler os 12 blogs que acompanho diariamente, dei de cara comigo mesma. Na tela escura do computador surgiu meu rosto e, então, percebi que não importa o quanto tentamos fugir, uma hora ou outra daremos de cara com nosso próprio rosto e teremos que nos enfrentar.

O MORCEGO
(Augusto dos Anjos)

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!


Comentários

Simo disse…
As vezes eu fico pensando se o fato de olharmos tanto a vida dos outros não é pq temos medo de nos conhecermos, ou se é simlesmente pq temos medo do que somos.
Carol disse…
Este é o ponto, Simo. Nào adianta tentar se distrair, uma hora a gnete é obrigada a olhar pra gnete mesmo.
Simo disse…
Sabe... faço isso no mínimo 3 X por semana, quando estou na piscina nadando.... nunca imaginei que divagaria tanto dentro de uma piscina...
Carol disse…
"gnete" quer dizer "gente" em hebraico, galera!