Tu não conhece a Adelaide...


Em 1999, ainda na faculdade, hospedei por um fim de semana uma paraguaia estudante de alemão. Era um dia de chuva, de tardezinha, quase escuro, cheguei em casa com a paraguaia, Marion. Junto com a gente chegou uma vira-lata branca com os olhos bem pretinhos que, simpaticamente, ficou ali pela frente de casa.

Como muitos outros, ela ganhou um potinho de comida, um de água e uma caixinha de papelão. O problema é que tinha que ganhar um nome também e as idéias eram muitas. Minha mãe queria chamar a cadelinha de Marion já que ela chegou junto com a paraguaia. Pensamos no assunto e concluímos, sabiamente, que a menina não se sentiria exatamente homenageada. Então aproveitamos o cenário e adotamos “Adelaide”, nossa anã paraguaia.

Adelaide com seus olhos bem pretinhos nos cativou de tal maneira que conseguiu algo inédito na minha casa: ganhou uma caminha dentro da garagem com cobertor e tudo. Nunca tivemos frescuras com cachorros. Cachorro é cachorro, gente é gente. Por isso a Adelaide nunca dormiu dentro de casa, nunca usou roupa, sapatinhos ou chapéu, nunca colocou calcinha com absorvente durante o cio. Meus pais, a Adelaide e eu só tínhamos três frescuras: chamávamos ela de filha, ela podia andar no corsa (e ali ela se sentia um poodle) e ganhou um porta-retrato com uma fotinho dela logo acima de sua caminha.

Dez anos é uma vida. Bem longa pra um cachorro. Durante dez anos a Adelaide fez de um tudo. Quando eu ia sair de casa, ela ficava na porta do carro, esperando pra entrar. Para ela não entrar eu tinha que dizer “Agora não pode, filha. A mãe vai pro ballet”. Se eu dissesse qualquer outro lugar, ela entrava e nem dava bola, mas, por algum motivo, “ir pro ballet” era sinônimo de “proibido entrar no carro”. Teve uma época que ela só queria comer carne, minha mãe encheu o prato dela de ração e disse “Agora tu vai ter só ração pra comer e vai ficar na tua cama refletindo sobre a fome no mundo, porque muita criança não tem o que tu tem pra comer”. Durante a noite, a Adelaide foi na lavanderia e, no meio de todas as roupas, pegou uma blusa indiana da minha mãe e arrancou todos os botõezinhos. De manhã na frente da cama dela, estavam a blusa sem nenhum furinho e os botões todos juntos num montinho do lado da blusa.

Nos últimos tempos ela andava com tumores enormes nos titis. Levaram na UFRGS e tiraram todo uma carreirinha de titis. Brincava que ela ficou monoteta, como na música dos Mamonas. Ela sempre acompanhava meu pai nas caminhadas pela vizinhança e nos churrascos da Gedore. Meu pai contava sobre a cirurgia pra todo mundo e dizia “Adelaide, mostra tua operação”. Ela deitava de barriga pra cima e deixava a cicatriz cor de rosa a mostra.

Há uma semana a Adelaide começou a ter uns sintomas estranhos. Alguns espamos, convulsões, uma babinha e paralisia temporária das patinhas traseiras. Na quinta-feira de manhã, eu e meu pai decidimos levá-la ao veterinário, mas ela sumiu. Ninguém viu a Adelaide, como Remédios, a Bela, ela simplesmente subiu aos céus. Depois de dez anos é difícil não ver mais os olhos bem pretinhos me esperando na frente da porta de manhã cedo. Espero que ela não tenha sofrido. Fiquei com a sensação de que ela foi embora pra que nós não a víssemos morrer. Melhor lembrar dos olhos bem pretinhos.

Comentários

Priscila disse…
Ai... eu borrei o rímel... :(
Que triste... Vou sentir falta da Adelaide, só ela tinha esses olhinhos pretos que tu descreveu.
Simo disse…
Nem conheci a Adelaide, mas tb chorei aqui...

Minha cachorrinha também fugiu... Ficou comigo 14 anos (cachorros de porte menor vivem amis tempo) Sinto falta da papudinha... Da carinha dela quando aprontava, da maozinha no rosto quando eu brigava com ela...

Eu tb acho que ela fugiu pra que eu não a visse morrer...

:(
Carol Fernandes disse…
Sinto muito!
A Adelaide era muiito querida, vou sentir falta dela quando for aí...
Beijão pra vocês
Alemoa Nicole disse…
Oin...que gracinha era esta Adelaide!! O bom mesmo foi ter tido a cia dela por 10 anos... guardem sempre a lembrança dos seus olhinhos pretos...
Quanto a ela fugir, sim... os cuscos geralmente fazem isto quando sabem que vão fazer a "passagem"... mas o certo mesmo é que a branquela dos olhos pretos será sempre eterna!!
Bjs...